Como diz o cabeçalho do meu blog “ Falo o que penso, compartilho do que gosto”. Por isso hoje quero falar de uma das minhas paixões literárias que tanto contribuiu para a dramaturgia nacional.
Quero falar de Nelson Rodrigues.
Fico surpreso de saber como tantas pessoas não conhecem o trabalho de um dos maiores escritores do nosso pais, um divisor de águas do teatro moderno, um ser humano conturbado, com uma história de vida cheia de desgraças, mas que nunca deixou-se abater e produziu uma vasta obra literária disponível a todos nós e tão pouco aproveitada pelos jovens de hoje.
Há uma imagem errônea de Nelson visto por muitos brasileiros. Como descrito em sua biografia muito bem elaborada por Ruy Castro intitulada “ O anjo Pornográfico”, fica muito bem demonstrado que o dramaturgo inteligentíssimo de pornográfico não tinha nada. Era um homem que falava da sociedade e cutucava a ferida de uma classe media alta, que se escondia, ou melhor, jogava para debaixo do tapete suas mazelas, e no intimo da família um pai, um marido austero, um profissional competente, cercado de tragédias.
Minha paixão por sua obra começou quando tinha 15 anos e li uma edição antiqüíssima de “Bonitinha, mas ordinária”. Daí pra frente li quase tudo o que escreveu, e me fez perceber que o cinema nacional deturpou grande parte da sua obra, transformando-a numa pornochanchada desmesurada. Indico como uma primeira leitura a quem quer conhecer o seu trabalho, os contos reunidos em “ A vida como ela é”, que também teve parte dos textos apresentados num quadro do Fantástico com brilhantes interpretações.
Nelson Rodrigues criou personagens e histórias brilhantes, expôs sua vida, seus amores e desamores, viveu intensamente e nos deixou no fim de 1980. Esse ano completando 30 anos de sua morte gostaria que o cinema, a TV e o teatro novamente reproduzissem obras espetaculares como “ a dama do lotação”, “ perdoa-me por me traíres”, “beijo no asfalto”, e tantos outros.
Alguns anos atrás separei algumas frases de Nelson que compunham um livro chamado “Flor de obsessão”, e criei uma coletânea de cinco contos intitulado “ Cinco minutos para pecar” e hoje peço licença para publicar um deles aqui no blog. Infelizmente os textos são de 3 laudas, e ficam enormes quando publicados num blog, por isso recomendo, a quem não tiver paciência de ler, que fique por aqui, com meu agradecimento e a dica de que : leiam Nelson Rodrigues, vale muito a pena. Abração.
Há uma imagem errônea de Nelson visto por muitos brasileiros. Como descrito em sua biografia muito bem elaborada por Ruy Castro intitulada “ O anjo Pornográfico”, fica muito bem demonstrado que o dramaturgo inteligentíssimo de pornográfico não tinha nada. Era um homem que falava da sociedade e cutucava a ferida de uma classe media alta, que se escondia, ou melhor, jogava para debaixo do tapete suas mazelas, e no intimo da família um pai, um marido austero, um profissional competente, cercado de tragédias.
Minha paixão por sua obra começou quando tinha 15 anos e li uma edição antiqüíssima de “Bonitinha, mas ordinária”. Daí pra frente li quase tudo o que escreveu, e me fez perceber que o cinema nacional deturpou grande parte da sua obra, transformando-a numa pornochanchada desmesurada. Indico como uma primeira leitura a quem quer conhecer o seu trabalho, os contos reunidos em “ A vida como ela é”, que também teve parte dos textos apresentados num quadro do Fantástico com brilhantes interpretações.
Nelson Rodrigues criou personagens e histórias brilhantes, expôs sua vida, seus amores e desamores, viveu intensamente e nos deixou no fim de 1980. Esse ano completando 30 anos de sua morte gostaria que o cinema, a TV e o teatro novamente reproduzissem obras espetaculares como “ a dama do lotação”, “ perdoa-me por me traíres”, “beijo no asfalto”, e tantos outros.
Alguns anos atrás separei algumas frases de Nelson que compunham um livro chamado “Flor de obsessão”, e criei uma coletânea de cinco contos intitulado “ Cinco minutos para pecar” e hoje peço licença para publicar um deles aqui no blog. Infelizmente os textos são de 3 laudas, e ficam enormes quando publicados num blog, por isso recomendo, a quem não tiver paciência de ler, que fique por aqui, com meu agradecimento e a dica de que : leiam Nelson Rodrigues, vale muito a pena. Abração.
O ESPECTRO
“AS MOTAS NÃO TRAEM...”
(Nelson Rodrigues – Flor de Obsessão)
Edinaide subiu a rua carregando vários pacotes sem ao menos conseguir olhar por onde andava. Atrás vinha Cleoberto fumando seu cigarro de menta na piteira inglesa que ganhara de um cliente. A cada passo empurrava a mulher para que andasse mais rápido. De longe as senhoras da vizinhança criticavam aquele homem bruto. Uma mocinha tão delicada e casada com um verme como aquele. Que tristeza sentia a mãe da pobrezinha comentavam as fofoqueiras.
Realmente dona Gracileide tinha uma tristeza profunda em ver Edinaide casada com aquele elemento, um troglodita. Quando receberam o pedido de casamento no jantar de sete de setembro, os pais nunca poderiam imaginar que aquele cavalheiro perfumado que dera uma aliança de diamantes para filha se tornasse um ser escabroso como, mal humorado e cafajeste.
Edinaide era filha única e nascera em berço esplêndido. Não era de ouro, mas teve em toda sua existência, até o casamento, tudo o que uma mulher pudesse desejar. Era linda, tinha os olhos amendoados com uma safira a luzir dentro. Os lábios grossos e os dentes numa arcada perfeita lhe cintilavam à luz como marfim. Os seios firmes e o quadril bem feito faziam par com lindas pernas torneadas pelos deuses. Os pés...Ah!!! Os pés de Edinaide. Nem Cinderela tinha pés tão lindos como os dela. Mas tudo isso pertencia exclusivamente a Cleoberto. Este pouco satisfeito jurava que um dia ainda melhoraria a aparência da esposa.
Na verdade Cleoberto tinha uma obsessão compulsiva sobre a beleza da esposa. Tinha plena e total certeza de sua beldade, tanto que andava atrás da esposa para ver se alguém que passasse de encontro a eles olharia para ela. Era um modo de se certificar se olhava ou não para outros homens. Quando saia para o trabalho, trancava a pobrezinha em casa e levava as chaves. Ela às vezes aparecia por entre a grade, mas logo entrava. Tinha receio que o marido chegasse e a visse no portão. As vizinhas se compadeciam dela, mas nada podiam fazer para ajudar. O padre da paróquia disse que ninguém podia se intrometer.
Cleoberto do escritório ligava dezenas de vezes durante o dia para saber o que a mulher estava fazendo. Ai dela se demorasse mais que dois toques para atender ao telefone. Muitas vezes podia-se ver a patética cena de Edinaide plantada sem calça na sala segurando o gancho do telefone numa mão e noutra um tucho de papel higiênico. Nem as necessidades básicas a pobre coitada tinha tempo para fazer. Cozinhava e passava, além de lavar, cerzir e inventar formas de agradar o maridinho. Confeccionava roupas masculinas com grande apresso e trazia Cleoberto numa elegância de lorde. E mesmo assim ele ainda desconfiava que Edinaide passava o dia a pensar besteiras. Dizia aos amigos que mulher que fica em casa sem ter o que fazer pensa bobagens e acaba por colocar galhos na cabeça do coitado do marido. Mas a pobrezinha da Edinaide amava Cleoberto como louca. Não dormia e nem respirava se o marido não estivesse por perto ou lhe dando ordens para tal. Vivia para ele e rezava todas as noites pedindo que ela morresse antes, por que não resistiria viver num mundo sem o marido.
Na missa dos domingos o casal desfilava de braços dados para que os homens vissem que aquela mulher tinha dono. Não permitia que ninguém se aproximasse e os cumprimentos eram respondidos apenas por ele. Edinaide mantinha a cabeça baixa e não encarava ninguém. Quando passavam da praça, ele a empurrava para frente. Caminhava atrás entre uma cusparada e outra, mandando que andasse mais depressa.
E são inacreditáveis as histórias da vida. Não é que um infeliz do escritório, certa tarde coloca uma pulga atrás da orelha de Cleoberto. É, o pulha do Reginaldinho, soltou na mesa do café, que mulher quietinha que fica o dia todo dentro de casa esperando o marido, recebe sempre o amante pelas portas do fundo. Sim a maioria trai e ele mesmo, cansara de entrar pela cozinha.
Aquela tarde demorou a passar e foram um total de quinze telefonemas para Edinaide até Cleoberto chegar em casa. Quando entrou, nem um beijo de boa noite deu na esposa. Correu a casa cheirando o ar, desconfiado de que alguém estivera ali. Sem entender Edinaide perguntava o que estava acontecendo. Vendo o papel ridículo que estava fazendo em frente à esposa, Cleoberto sorriu amarelo e foi tomar banho.
Durante o jantar ficou observando a esposa para ver se percebia algo de traição em seu rosto. De tempos em tempos ela o olhava e sorria. Na sua mente ele raciocinava se aquele sorriso não era um modo de disfarçar o adultério. Os cabelos de Edinaide estavam arrumados de forma diferente e isso podia ser uma prova de que alguém estivera na casa e antes dele chegar. Na pressa ela devia ter amarrado de outra forma. Ou podia ser também que estivesse interessada por outro homem e estava se embelezando para ele. Mas isso jamais aconteceria. Deste dia em diante ela ficaria feia, para que nenhum homem a desejasse mais.
O primeiro passo de Cleoberto foi despejar na pia do banheiro todos os xampus e cremes para cabelo. Se o bonitão que a visitasse gostava de cabelos sedosos, que procurasse em outras bandas. Sem entender o que estava acontecendo, Edinaide acabou aceitando sem questionar muito. Passaria a lavar seus cabelos longos com ervas que cultivava no quintal. Mas por pouco tempo, porque três dias depois a levou numa cabeleireira e as madeixas lindas de Edinaide transformaram-se num corte de dois dedos do couro cabeludo. Quando saíram do salão, ele sorria e ela podia ser confundida com um rapaz adolescente.
E assim a rotina seguiu por meses. Ele chegando em horas variadas para tentar surpreende-la no ato de adultério ou tirando-lhe a beleza que Deus com tanto cuidado lhe havia concedido. Os batons, pós-compactos e esmaltes sumiram daquela casa e nem mesmo as revistas de moda pode comprar mais. A pobre coitada passava o dia a cantarolar musicas religiosa. Aos domingos assistia a missa pela televisão.
Cleoberto não queria mais que saísse de casa. Achava que se insinuava para o capelão na saída da reza. A vida de Edinaide resumiu-se em cozinhar para o marido. O telefone foi desligado e o radio quebrado numa estação evangélica. Tinha certeza que se passasse o dia ouvindo mensagens de Deus, não teria chance de traí-lo.
A cartada final veio quando Cleoberto resolveu que as curvas do corpo de Edinaide estavam provocando demais os homens. Mas que homens? Sendo que ela não saia de casa. Mas o marido insistia em um regime de pão e mel. No jantar ele degustava as costelinhas de porco que trazia, enquanto a esposa digeria um angu de fubá e café preto.
Não demorou para que a pobre perdesse, cinco, dez, vinte e oito quilos. Tornou-se um espectro andando na casa. A pele numa tonalidade acinzentada e os lábios murchos davam-lhe a aparência de uma velha centenária. As unhas cresciam e os cabelos caiam.
Era impressionante ver Edinaide. Os pais não podiam visitá-la e nem mesmo Cleoberto conversava com a esposa. Ela passava boa parte do dia deitada na cama, sem forças para levantar-se. À noite tentava sorrir quando lhe servia a comida, mas os dentes também enfraqueciam e sentia dores horríveis no corpo.
Mas o cretino do Reginaldinho continuava a falar sobre mulheres que traiam, e Cleoberto escutava com uma ânsia inimaginável. Fantasiava sua mulher com outros homens deitada na areia da praia, sobre a boléia de caminhões, dentro de piscinas de água quente. Eram imagens que o perturbavam. E em casa a indefesa Edinaide esperava entre imagens de santos a hora de se livrar de seu martírio. Sabia que o marido a judiava por pensar que o enganava. Depois de tanto tempo percebera a intenção dele e já não suportando mais, colocou debaixo da cama sapatos de um outro homem. Conseguiu a duras penas pular na casa do vizinho e roubando-lhe o objeto do vestuário escondeu-o para que Cleoberto achasse. Sabia que o marido sempre procurava alguma coisa e queria que achasse. Talvez assim a abandonasse e bem ou mal viveria em paz.
Aquela noite quando saiu do banho e abaixou-se para pegar o chinelo deparou-se com o par de botinas pretas sob o seu leito conjugal. Incrédulo permaneceu boquiaberto olhando o artefato de couro que estava a um palmo do seu rosto. Fez uma pequena poça de bába no chão. Levantou-se silenciosamente e foi até a sala. Parou e observou a esposa costurando um lençol.
Ela estava sorridente. Ele percebeu que havia conspurcado com algum macho na cama onde dormiram uma vida toda. Reginaldinho tinha razão. As esposas que ficam sozinhas em casa o dia todo traem seus maridos na própria cama onde se entregam à noite no cumprimento do matrimônio. Ela sujara a cama e isso devia ter acontecido milhares de vezes. Era uma ordinária que trazia elementos do sexo oposto para deleitar-se em sua luxuriosa ânsia de pecar. Vagabunda!
Sentado a mesa de jantar pensava em surrá-la, mas ao mesmo tempo queria amá-la. O que os homens com quem ela dormia sentiam sabendo que era casada? Será que a possuíam pensando nele? Era uma impura, uma mulher que qualquer homem quereria para uma noite de sodomia. Cleoberto sentiu um desejo pela esposa incontrolável. Queria possuí-la e foi o que fez. Correu na sala e atirou-se sobre ela rasgando a camisola e deixando exposto o corpo esquelético de Edinaide. Sem reagir ela entregou-se a ele com volúpia. Rolaram entre almofadas sobre o carpete da sala de estar. Amaram-se como animais. Satisfeito Cleoberto levantou-se e foi ao quarto. Quando voltou ela se arrumava agachada perto do sofá. Ele se aproximou e apontou seu revólver para o peito de Edinaide. Sem reação a pobre levou três tiros que lhe tiraram a vida instantaneamente. Cleoberto soprou o cano da arma em meio a gritos de vizinhos na porta. Olhou o cadáver da mulher e disse a si. – “Pronto! Está feito! Pelos menos as mortas não traem...”
Fim
“AS MOTAS NÃO TRAEM...”
(Nelson Rodrigues – Flor de Obsessão)
Edinaide subiu a rua carregando vários pacotes sem ao menos conseguir olhar por onde andava. Atrás vinha Cleoberto fumando seu cigarro de menta na piteira inglesa que ganhara de um cliente. A cada passo empurrava a mulher para que andasse mais rápido. De longe as senhoras da vizinhança criticavam aquele homem bruto. Uma mocinha tão delicada e casada com um verme como aquele. Que tristeza sentia a mãe da pobrezinha comentavam as fofoqueiras.
Realmente dona Gracileide tinha uma tristeza profunda em ver Edinaide casada com aquele elemento, um troglodita. Quando receberam o pedido de casamento no jantar de sete de setembro, os pais nunca poderiam imaginar que aquele cavalheiro perfumado que dera uma aliança de diamantes para filha se tornasse um ser escabroso como, mal humorado e cafajeste.
Edinaide era filha única e nascera em berço esplêndido. Não era de ouro, mas teve em toda sua existência, até o casamento, tudo o que uma mulher pudesse desejar. Era linda, tinha os olhos amendoados com uma safira a luzir dentro. Os lábios grossos e os dentes numa arcada perfeita lhe cintilavam à luz como marfim. Os seios firmes e o quadril bem feito faziam par com lindas pernas torneadas pelos deuses. Os pés...Ah!!! Os pés de Edinaide. Nem Cinderela tinha pés tão lindos como os dela. Mas tudo isso pertencia exclusivamente a Cleoberto. Este pouco satisfeito jurava que um dia ainda melhoraria a aparência da esposa.
Na verdade Cleoberto tinha uma obsessão compulsiva sobre a beleza da esposa. Tinha plena e total certeza de sua beldade, tanto que andava atrás da esposa para ver se alguém que passasse de encontro a eles olharia para ela. Era um modo de se certificar se olhava ou não para outros homens. Quando saia para o trabalho, trancava a pobrezinha em casa e levava as chaves. Ela às vezes aparecia por entre a grade, mas logo entrava. Tinha receio que o marido chegasse e a visse no portão. As vizinhas se compadeciam dela, mas nada podiam fazer para ajudar. O padre da paróquia disse que ninguém podia se intrometer.
Cleoberto do escritório ligava dezenas de vezes durante o dia para saber o que a mulher estava fazendo. Ai dela se demorasse mais que dois toques para atender ao telefone. Muitas vezes podia-se ver a patética cena de Edinaide plantada sem calça na sala segurando o gancho do telefone numa mão e noutra um tucho de papel higiênico. Nem as necessidades básicas a pobre coitada tinha tempo para fazer. Cozinhava e passava, além de lavar, cerzir e inventar formas de agradar o maridinho. Confeccionava roupas masculinas com grande apresso e trazia Cleoberto numa elegância de lorde. E mesmo assim ele ainda desconfiava que Edinaide passava o dia a pensar besteiras. Dizia aos amigos que mulher que fica em casa sem ter o que fazer pensa bobagens e acaba por colocar galhos na cabeça do coitado do marido. Mas a pobrezinha da Edinaide amava Cleoberto como louca. Não dormia e nem respirava se o marido não estivesse por perto ou lhe dando ordens para tal. Vivia para ele e rezava todas as noites pedindo que ela morresse antes, por que não resistiria viver num mundo sem o marido.
Na missa dos domingos o casal desfilava de braços dados para que os homens vissem que aquela mulher tinha dono. Não permitia que ninguém se aproximasse e os cumprimentos eram respondidos apenas por ele. Edinaide mantinha a cabeça baixa e não encarava ninguém. Quando passavam da praça, ele a empurrava para frente. Caminhava atrás entre uma cusparada e outra, mandando que andasse mais depressa.
E são inacreditáveis as histórias da vida. Não é que um infeliz do escritório, certa tarde coloca uma pulga atrás da orelha de Cleoberto. É, o pulha do Reginaldinho, soltou na mesa do café, que mulher quietinha que fica o dia todo dentro de casa esperando o marido, recebe sempre o amante pelas portas do fundo. Sim a maioria trai e ele mesmo, cansara de entrar pela cozinha.
Aquela tarde demorou a passar e foram um total de quinze telefonemas para Edinaide até Cleoberto chegar em casa. Quando entrou, nem um beijo de boa noite deu na esposa. Correu a casa cheirando o ar, desconfiado de que alguém estivera ali. Sem entender Edinaide perguntava o que estava acontecendo. Vendo o papel ridículo que estava fazendo em frente à esposa, Cleoberto sorriu amarelo e foi tomar banho.
Durante o jantar ficou observando a esposa para ver se percebia algo de traição em seu rosto. De tempos em tempos ela o olhava e sorria. Na sua mente ele raciocinava se aquele sorriso não era um modo de disfarçar o adultério. Os cabelos de Edinaide estavam arrumados de forma diferente e isso podia ser uma prova de que alguém estivera na casa e antes dele chegar. Na pressa ela devia ter amarrado de outra forma. Ou podia ser também que estivesse interessada por outro homem e estava se embelezando para ele. Mas isso jamais aconteceria. Deste dia em diante ela ficaria feia, para que nenhum homem a desejasse mais.
O primeiro passo de Cleoberto foi despejar na pia do banheiro todos os xampus e cremes para cabelo. Se o bonitão que a visitasse gostava de cabelos sedosos, que procurasse em outras bandas. Sem entender o que estava acontecendo, Edinaide acabou aceitando sem questionar muito. Passaria a lavar seus cabelos longos com ervas que cultivava no quintal. Mas por pouco tempo, porque três dias depois a levou numa cabeleireira e as madeixas lindas de Edinaide transformaram-se num corte de dois dedos do couro cabeludo. Quando saíram do salão, ele sorria e ela podia ser confundida com um rapaz adolescente.
E assim a rotina seguiu por meses. Ele chegando em horas variadas para tentar surpreende-la no ato de adultério ou tirando-lhe a beleza que Deus com tanto cuidado lhe havia concedido. Os batons, pós-compactos e esmaltes sumiram daquela casa e nem mesmo as revistas de moda pode comprar mais. A pobre coitada passava o dia a cantarolar musicas religiosa. Aos domingos assistia a missa pela televisão.
Cleoberto não queria mais que saísse de casa. Achava que se insinuava para o capelão na saída da reza. A vida de Edinaide resumiu-se em cozinhar para o marido. O telefone foi desligado e o radio quebrado numa estação evangélica. Tinha certeza que se passasse o dia ouvindo mensagens de Deus, não teria chance de traí-lo.
A cartada final veio quando Cleoberto resolveu que as curvas do corpo de Edinaide estavam provocando demais os homens. Mas que homens? Sendo que ela não saia de casa. Mas o marido insistia em um regime de pão e mel. No jantar ele degustava as costelinhas de porco que trazia, enquanto a esposa digeria um angu de fubá e café preto.
Não demorou para que a pobre perdesse, cinco, dez, vinte e oito quilos. Tornou-se um espectro andando na casa. A pele numa tonalidade acinzentada e os lábios murchos davam-lhe a aparência de uma velha centenária. As unhas cresciam e os cabelos caiam.
Era impressionante ver Edinaide. Os pais não podiam visitá-la e nem mesmo Cleoberto conversava com a esposa. Ela passava boa parte do dia deitada na cama, sem forças para levantar-se. À noite tentava sorrir quando lhe servia a comida, mas os dentes também enfraqueciam e sentia dores horríveis no corpo.
Mas o cretino do Reginaldinho continuava a falar sobre mulheres que traiam, e Cleoberto escutava com uma ânsia inimaginável. Fantasiava sua mulher com outros homens deitada na areia da praia, sobre a boléia de caminhões, dentro de piscinas de água quente. Eram imagens que o perturbavam. E em casa a indefesa Edinaide esperava entre imagens de santos a hora de se livrar de seu martírio. Sabia que o marido a judiava por pensar que o enganava. Depois de tanto tempo percebera a intenção dele e já não suportando mais, colocou debaixo da cama sapatos de um outro homem. Conseguiu a duras penas pular na casa do vizinho e roubando-lhe o objeto do vestuário escondeu-o para que Cleoberto achasse. Sabia que o marido sempre procurava alguma coisa e queria que achasse. Talvez assim a abandonasse e bem ou mal viveria em paz.
Aquela noite quando saiu do banho e abaixou-se para pegar o chinelo deparou-se com o par de botinas pretas sob o seu leito conjugal. Incrédulo permaneceu boquiaberto olhando o artefato de couro que estava a um palmo do seu rosto. Fez uma pequena poça de bába no chão. Levantou-se silenciosamente e foi até a sala. Parou e observou a esposa costurando um lençol.
Ela estava sorridente. Ele percebeu que havia conspurcado com algum macho na cama onde dormiram uma vida toda. Reginaldinho tinha razão. As esposas que ficam sozinhas em casa o dia todo traem seus maridos na própria cama onde se entregam à noite no cumprimento do matrimônio. Ela sujara a cama e isso devia ter acontecido milhares de vezes. Era uma ordinária que trazia elementos do sexo oposto para deleitar-se em sua luxuriosa ânsia de pecar. Vagabunda!
Sentado a mesa de jantar pensava em surrá-la, mas ao mesmo tempo queria amá-la. O que os homens com quem ela dormia sentiam sabendo que era casada? Será que a possuíam pensando nele? Era uma impura, uma mulher que qualquer homem quereria para uma noite de sodomia. Cleoberto sentiu um desejo pela esposa incontrolável. Queria possuí-la e foi o que fez. Correu na sala e atirou-se sobre ela rasgando a camisola e deixando exposto o corpo esquelético de Edinaide. Sem reagir ela entregou-se a ele com volúpia. Rolaram entre almofadas sobre o carpete da sala de estar. Amaram-se como animais. Satisfeito Cleoberto levantou-se e foi ao quarto. Quando voltou ela se arrumava agachada perto do sofá. Ele se aproximou e apontou seu revólver para o peito de Edinaide. Sem reação a pobre levou três tiros que lhe tiraram a vida instantaneamente. Cleoberto soprou o cano da arma em meio a gritos de vizinhos na porta. Olhou o cadáver da mulher e disse a si. – “Pronto! Está feito! Pelos menos as mortas não traem...”
Fim
13 comentários:
Oi Rafael...
Não sei se você sabe, mas tenho me tornado leitora assídua do seu blog. Adoro o seu texto e acho super inteligente sua críticas.
Sobre o post, confesso que pouco li sobre nelson Rodrigues... lembro de uma vez estar numa fossa danada e uma amiga estava com um livro dele... peguei e disse, deixa eu ler aqui, preciso passar o tempo.. devorei o livro.. mas n consigo me lembrar de forma alguma o nome dele...
bjs
Minha mãe tem alguns livros dele, confesso que nunca li (juventuuuude...) mas vou procurar saber mais dele.
Obrigada pela indicação;)
Show o seu post! Sabe eu detestava Nélson Rodrigues e não conseguia entender a adoração e ódio que ele sempre foi capaz de exercer, aí na facul de jornalismo, na hora de escolher o tema de minha monografia, escolhi falar sobre Nélson Rodrigues e fiz ela todinha em cima de vários filmes e do livro "Anjo Pornográfico", nossa devorei vida e obra do Nélson.
E aprendi a entendê-lo e a admirá-lo. Seu post me fez voltar no tempo... parabéns pelo post e pela forma que abordou.
Beijo, beijo!
She
Realmente um texto muito bom, o conto irei ler mais tarde com calma, mas sei do seu gosto pelo Nelson Rodrigues, até mesmos alguns dos seu textos são rodriguianos....
Abçs
No meu blog vc não comenta mais porque?
To sabendo!
Olá Rafael!
Olha, por este teste eu passei. Ufa! Acho que minhas aulas de literatura do colégio e cursinho renderam alguma coisa e eu conheço Nelson Rodrigues por Vestido de Noiva... rs
Bom, já que eu nem sou fanático por livros e contos eu passei bem longe deste conto... rsrs. Mentira! Eu li, e achei assim, tão dramático, que bom né?! E, sabe, por estas e outras que eu falo que não vou me casar (mentira 2!), vai que alguém me mata e me deixa mais magro ainda! rsrsrs.
Abraço!
Ele é da época que no Brasil as pessoas ainda liam e sabiam escrever hoje em dia tudo se resume a 140 caracteres do twitter.
O que esperar de pessoas assim?
Abraços
Meu caro Rafel,
Voltei para pedir desculpas... fui insensível “também”, porque, pior que agredir alguma pessoa, diminuí-la ou recriminá-la por “erros” ínfimos cometidos na língua culta do falante/escrevente (como me pareceu), é usar bem a língua para impor opinião ou sobrepô-la ao do outro como fazem muitos doutores ou versados na linguagem (como acabei fazendo, embora não sendo nem uma coisa nem outra). Por isso reconheço minha resposta um tanto dura. Mas queria te dizer naquele momento que havia me decepcionado ao vê-lo se referir à língua de índio associado ao erro. Realmente, você não tem que agradar a gregos... nem a troianos.
Quanto a “erros” de sua escrita, não se preocupe, não venho aqui ao Baú do Jamal procurá-los, caçá-los; ao contrário, venho porque gosto, porque aprendo contigo, por ser seu leitor já há algum tempo, por ler boas postagens como este aqui sobre a obra de Nelson, uma leitura fina e inteligente sobre a qual assino embaixo. Já havia percebido um toque de escrita rodrigueana em ti. Sério!
E outras vezes eu sorri muito com sua ideias. Sim, eu sorri... e penso que seja uma pessoa divertida, simpática...boa para se ouvir. Ah, penso que você não tem erros de português, sendo o português a língua viva – nós somos competentes da língua que aprendemos no seio da família e terminamos por moldar na escola aos moldes de uma norma, de uma lei dita “culta” que foi gramaticalizada como um código de trânsito para as pessoas não entrarem em conflitos mais do que já há: no trânsito e nas palavras. Esta língua da escola sim por muito tempo só nos fez mostrar que erramos, e pouco que acertamos... é assim com matemática, física, cálculos etc... Então nela (gramática) erramos muito, todos nós (incluindo nós dois) porque ela não foi instituída para aproximar os povos, mas para separar os LETRADOS dos ditos bárbaros, vilãos e plebeus... dos escravos, dos analfabetos, dos pobres etc.
Por outro lado, também não quero busque meus erros, pois se o fizer logo encontrará muitos, desde a “quebra” da norma linguística a outras como algumas manias que vem destacando em alguns de seus posts, e logo perderemos este diálogo entre blogs que é o melhor de tudo.
Ontem à noite, cheguei de viagem e não conseguia dormir, já que havia dormido muito no ônibus. Então, depois de resolver o problema do blog - sobre o que acabei escrevendo e postando – eu disse: “graças a Deus que posso encontrar os blogs dos quais gosto muito”. E o fiz! Li mais de 8 postes somente no Baú do Jamal - de cima para baixo. Mas naquele, perdi as estribeiras... desculpas mesmo, cara! Quero ler aqui tanto opiniões das quais compartilho e, mais ainda aquelas que me fazem repensar meus conceitos, meus valores... e sobre a vida, mesmo que não me agrade. Sempre digo: as ideias que ouço dos outros sendo iguais às minhas pouco me acrescentam, embora as ouço e delas gosto porque fortalece o que sei; no entanto, somam-me muito mais as diferentes...porque são novas e, mesmo não concordando, me fazem reconstruir outras.
Grande abraço para ti também, voltarei sempre que puder.
Petro
Oi Rafael, bom dia!
Eu sou uma dessas que vc pode se espantar...
Infelizmente não o conhecia, fui atrás com aquele comentário e descobri que já havia o assitido e não lido.Fazer o que?
Ás vezes o que parece simples e comum para nós é o novo e o decobrimento para outros...
Aprendi isso com a vida..Sempre achei um absurdo alguem não saber fazer um arroz e feijão ou não saber que após uma criança acabar de mamar tem que levantar para arrotar, mas tem muita gente que não sabe...
Mas como tem muita coisa para ver e aprender, fico hoje aqui maravilhada com este texto que colocou...
orque sempre há tempo de ir atrás de coisas boas e experimenta-las...
Com certeza vou gostar de ler suas obras, acho que é minha cara, vc não acha???
Bjs e ótima semana para vc!
Hoje tô na correria, outra hoje leio esse trecho enorme com mais calma XD.
Mas engraçado, me lembro de alguma outra pessoa ter indicado Nelson Rodrigues não tão distante de hoje...
Abração Rafael!
Eu seria hipócrita se dissesse que leio Nelson Rodrigues, na verdade dele o que conheço melhor são algumas adaptações pra séries, filmes e gostei do que vi, me parece uma visão assim bem realista do ser humano. No mais não dá pra dizer muito só se realmente eu conhecesse pelo menos um livro dele por completo...
Beijocas
Grande Nelson Rodrigues, assisti as peças que pude, os livros tenho aqui um de Contos fabulosos,Nelson tinha o dom da "Palavra Inteligente", o que poucos possuem, embora muitos não gostassem talvez por não terem como interpretar as palavras à altura das escritas. E realmente, a grande porcentagem que não conhece ou não entende o que representa e representou Nelson, não sabe a cultura que está perdendo.Mas ainda eé tempo.
Parabéns pelo excelente texto e a escolha perfeita!
Abraço!
Fê
Li muito e assisti muitas montagens na época que fazia teatro e talvez por isso eu tenha criado algumas resistências.
O que acontece é que temos trabalhos muitos ruins aqui no Brasil (principalmente no Rio) e que adaptam porcamente os textos. Aí, com o tempo, fui enjoando do que via. Todas as montagens possuem cara de montagem de final de curso de teatro - e de fato são. Não entendo o por quê de TODAS as montagens finais de curso serem Rodrigueanas.
Pois bem,
andei assistindo as montagens da Cia Armazem de Teatro - que é daí do Sul. E caaaraalhooo
finalmente existe luz no fim do palco. Gente que consegue traduzir com bom gosto o que ele escrevia..porque é difícil fazer do mau gosto o bom gosto. É arte. Aí vi que gosto dele, eu estava era vendo as montagens erradas.
Hoje já resolvi que só assisto se for com eles ou com alguma cia que use do mesmo estilo. Não arrisco mais.
B-jou
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