Sempre digo que não tenho ídolos
por que acho a idolatria uma perda de tempo. Na verdade tenho sim respeito e
admiração por algumas personalidades e uma delas, que me cativou ainda moleque,
foi Nelson Rodrigues.
Hoje Nelson completaria 100 anos
de idade e em dezembro 32 anos que partiu. Para uma mente brilhante como a dele,
a ida foi prematura demais. Digo sempre que algumas personalidades poderiam ter
estado entre nós mais duas décadas que fossem, e teríamos muito mais delas para
nos orgulhar. Imagino o quanto Nelson não teria produzido nos anos subsequentes
a sua morte, no auge da mudança de regime no Brasil. Mas, descansou, e deixou
um legado razoável para desfrutarmos.
Atrevo-me a escrever, e a dramaturgia
de Nelson Rodrigues foi sempre inspiração, por que adoro essa coisa suburbana,
classe média que ele muito bem apresentou em seus livros e na serie “ a Vida
como ela é”, tanto que de um livro de frases construí digamos outro livro, onde
a cada epigrafe dita por ele, um conto foi criado.
Sei que é profundamente chato e
constrangedor publicar textos enormes no blog. Sei do tempo escasso de cada um,
e que as leituras tem que ser rápidas e dinâmicas, mas hoje em especial, pela
celebração do nascimento de Nelson Rodrigues, irei abusar da paciência de cada
um que se dispor a ler e publico um dos meus contos escritos em homenagem a
ele. Não há necessidade de prosseguir, aqueles que não sentirem vontade de ler,
terminamos aqui com um forte abraço, e aos que chegarem ao fim, agradeço pela
delicadeza e consideração.
ótima quinta feira a todos.
Capítulo 6 : O
Espectro
“AS
MORTAS NÃO TRAEM...”
(Nelson Rodrigues – Flor de
Obsessão)
Edinaide subiu a rua carregando vários pacotes sem
ao menos conseguir olhar por onde andava. Atrás vinha Cleoberto fumando seu
cigarro de menta na piteira inglesa que ganhara de um cliente. A cada passo
empurrava a mulher para que andasse mais rápido. De longe as senhoras da
vizinhança criticavam aquele homem bruto. Uma mocinha tão delicada e casada com
um verme como aquele. Que tristeza sentia a mãe da pobrezinha comentavam as
fofoqueiras.
Realmente dona Gracileide tinha uma tristeza
profunda em ver Edinaide casada com aquele elemento troglodita. Quando
receberam o pedido de casamento no jantar de sete de setembro, os pais nunca
poderiam imaginar que aquele cavalheiro perfumado que dera uma aliança de brilhantes
para filha se tornasse um ser escabroso como aquele.
Edinaide era filha única e nascera em berço
esplêndido. Não era de ouro, mas teve em toda sua existência, até o casamento,
tudo o que uma mulher possa desejar. Era linda, tinha os olhos amendoados com
uma safira a luzir dentro. Os lábios grossos e os dentes numa arcada perfeita
lhe cintilavam à luz como marfim. Os seios firmes e o quadril bem feito faziam
par com lindas pernas torneadas pelos deuses. Os pés...Ah!!! Os pés de
Edinaide. Nem Cinderela tinha pés tão lindos como os dela. Mas tudo isso
pertencia exclusivamente a Cleoberto. Este, pouco satisfeito jurava que um dia
ainda melhoraria a aparência da esposa.
Na verdade Cleoberto tinha uma obsessão compulsiva
sobre a beleza da esposa. Tinha plena e total certeza de sua beldade, tanto que
andava atrás da esposa para ver se alguém que passasse de encontro a eles
olharia para ela. Era um modo de se certificar se olhava ou não para outros
homens. Quando saia para o trabalho, trancava a pobrezinha em casa e levava as
chaves. Ela às vezes aparecia por entre as grades, mas logo entrava. Tinha
receio que o marido chegasse e a visse no portão. As vizinhas se compadeciam
dela, mas nada podiam fazer para ajudar. O padre da paróquia alertava que
ninguém podia se intrometer.
Cleoberto do escritório ligava dezenas de vezes
durante o dia para saber o que a mulher estava fazendo. Ai dela se demorasse
mais que dois toques para atender ao telefone. Muitas vezes podia-se ver a
patética cena de Edinaide plantada sem calça na sala segurando o gancho do
telefone numa mão e noutra um tucho de papel higiênico. Nem as necessidades
básicas a pobre coitada tinha tempo para fazer. Cozinhava e passava, além de
lavar, cerzir e inventar formas de agradar o maridinho. Confeccionava roupas
masculinas com grande apresso e trazia Cleoberto numa elegância de lorde. E
mesmo assim ele ainda desconfiava que Edinaide passasse o dia a pensar
besteiras. Dizia aos amigos que mulher que fica em casa sem ter o que fazer
pensa besteira e acaba por colocar galhos na cabeça do coitado do marido. Mas a
pobrezinha da Edinaide amava Cleoberto como louca. Não dormia e nem respirava
se o marido não estivesse por perto ou lhe dando ordens para tal. Vivia para
ele e rezava todas as noites pedindo que ela morresse antes, por que não
resistiria viver num mundo sem o marido.
Na missa dos domingos o casal desfilava de braços
dados para que os homens vissem que aquela mulher tinha dono. Não permitia que
ninguém se aproximasse e os cumprimentos eram respondidos apenas por ele.
Edinaide mantinha a cabeça baixa e não encarava ninguém. Quando passavam da
praça, ele a empurrava para frente. Caminhava atrás entre uma cusparada e outra
mandando que andasse mais depressa.
E são inacreditáveis as histórias da vida. Não é
que um infeliz do escritório, certa tarde coloca uma pulga atrás da orelha de
Cleoberto. É, o pulha do Reginaldinho, soltou na mesa do café, que mulher
quietinha que fica o dia todo dentro de casa esperando o marido, recebe sempre
o amante pelas portas do fundo. Sim a maioria trai e ele mesmo, cansara de
entrar pela cozinha.
Aquela tarde demorou a passar e foram um total de
quinze telefonemas para Edinaide até Cleoberto chegar em casa. Quando entrou,
nem um beijo de boa noite deu na esposa. Correu a casa cheirando o ar,
desconfiado de que alguém estivera ali. Sem entender Edinaide perguntava o que
estava acontecendo. Vendo o papel ridículo que estava fazendo em frente à
esposa, Cleoberto sorriu amarelo e foi tomar banho.
Durante o jantar ficou observando a esposa para ver
se percebia algo de traição em seu rosto. De tempos em tempos ela o olhava e
sorria. Na sua mente ele raciocinava se aquele sorriso não era um modo de
disfarçar o adultério. Os cabelos de Edinaide estavam arrumados de forma
diferente e isso podia ser uma prova de que alguém estivera na casa antes dele
chegar. Na pressa ela devia ter amarrado de outra forma. Ou podia ser também
que estivesse interessada por outro homem e estava se embelezando para ele. Mas
isso jamais aconteceria. Deste dia em diante ela ficaria feia, para que nenhum
homem a desejasse mais.
O primeiro passo de Cleoberto foi despejar na pia
do banheiro todos os xampus e cremes para cabelo. Se o bonitão que a visitasse
gostava de cabelos sedosos, que procurasse em outras bandas. Sem entender o que
estava acontecendo, Edinaide acabou aceitando sem questionar muito. Passaria a
lavar seus cabelos longos com ervas que cultivava no quintal. Mas por pouco
tempo, porque três dias depois a levou numa cabeleireira e as madeixas lindas
de Edinaide transformaram-se num corte de dois dedos do couro cabeludo. Quando
saíram do salão, ele sorria e ela podia ser confundida com um rapaz
adolescente.
E assim a rotina seguiu por meses. Ele chegando em
horas variadas para tentar surpreende-la no ato de adultério ou tirando-lhe a
beleza que Deus com tanto cuidado lhe havia concedido. Os batons, pós-compactos
e esmaltes sumiram daquela casa, nem mesmo as revistas de moda pode comprar. A
pobre coitada passava o dia a cantarolar musicas religiosa. Aos domingos
assistia a missa pela televisão. Cleoberto não queria mais que saísse de casa.
Achava que se insinuava para o capelão na saída da reza. A vida de Edinaide
resumiu-se em cozinhar para o marido. O telefone foi desligado e o radio
quebrado numa estação evangélica. Tinha certeza que se passasse o dia ouvindo
mensagens de Deus, não teria chance de traí-lo.
A cartada final veio quando Cleoberto resolveu que
as curvas do corpo de Edinaide estavam provocando demais os homens. Mas que
homens? Sendo que ela não saia de casa. Mas o marido insistia em um regime de
pão e mel. No jantar ele degustava as costelinhas de porco que trazia, enquanto
a esposa digeria um angu de fubá e café preto.
Não demorou para que a pobre perdesse, cinco, dez,
vinte e oito quilos. Tornou-se um espectro andando na casa. A pele numa
tonalidade acinzentada e os lábios murchos davam-lhe a aparência de uma velha
centenária. As unhas cresciam e os cabelos caiam. Era impressionante ver
Edinaide. Os pais não podiam visitá-la e nem mesmo Cleoberto conversava com a
esposa. Ela passava boa parte do dia deitada na cama, sem forças para
levantar-se. À noite tentava sorrir quando lhe servia a comida, mas os dentes
também enfraqueciam e sentia dores horríveis no corpo.
Mas o cretino do Reginaldinho continuava a falar
sobre mulheres que traiam, e Cleoberto escutava com uma ânsia inimaginável.
Fantasiava sua mulher com outros homens deitada na areia da praia, sobre a
boléia de caminhões, dentro de piscinas de água quente. Eram imagens que o
perturbavam. E em casa a indefesa Edinaide esperava entre imagens de santos a
hora de se livrar de seu martírio. Sabia que o marido a judiava por pensar que
o enganava. Depois de tanto tempo percebera a intenção dele e já não suportando
mais, colocou debaixo da cama sapatos de um outro homem. Conseguiu a duras
penas pular na casa do vizinho e roubando-lhe o objeto do vestuário escondeu-o
para que Cleoberto achasse. Sabia que o marido sempre procurava alguma coisa e
queria que achasse. Talvez assim a abandonasse e bem ou mal viveria em paz.
Quando saiu do banho e abaixou-se para pegar o
chinelo deparou-se com o par de botinas pretas sob o seu leito conjugal.
Incrédulo permaneceu boquiaberto olhando o artefato de couro que estava a um
palmo do seu rosto. Fez uma pequena poça de bába no chão. Levantou-se
silenciosamente e foi até a sala. Parou e observou a esposa costurando um
lençol.
Ela estava sorridente. Ele percebeu que havia
conspurcado com algum macho na cama onde dormiram uma vida toda. Reginaldinho
tinha razão. As esposas que ficam sozinhas em casa o dia todo traem seus
maridos na própria cama onde se entregam à noite no cumprimento do matrimônio.
Ela sujara a cama e isso devia ter acontecido milhares de vezes. Era uma
ordinária que trazia elementos do sexo oposto para deleitar-se em sua luxuriosa
ânsia de pecar. Vagabunda!
Sentado na mesa de jantar pensava em surra-la, mas
ao mesmo tempo queria ama-la. O que os homens com quem ela dormia sentiam
sabendo que era casada? Será que a possuíam pensando nele? Era uma impura, uma
mulher que qualquer homem quereria para uma noite de sodomia. Cleoberto sentiu
um desejo pela esposa incontrolável. Queria possuí-la e foi o que fez. Correu
na sala e atirou-se sobre ela rasgando a camisola e deixando exposto o corpo
esquelético de Edinaide. Sem reagir ela entregou-se a ele com volúpia. Rolaram
entre almofadas sobre o carpete da sala de estar. Amaram-se como animais.
Satisfeito Cleoberto levantou-se e foi ao quarto. Quando voltou ela se arrumava
agachada perto do sofá. Ele se aproximou e apontou seu revólver para o peito de
Edinaide. Sem reação a pobre levou três tiros que lhe tiraram a vida
instantaneamente. Cleoberto soprou o cano da arma em meio a gritos de vizinhos
na porta. Olhou o cadáver da mulher e disse a si.
– “Pronto! Está feito! Pelos
menos morta ela não trairá...”
Fim
6 comentários:
Nelson Rodrigues é o "cara" da dramaturgia literária brasileira ... pelo menos para mim ... Li várias obras dele e isto me deu esta certeza ... fantástico mesmo ...
bjão
Rapaz, como você escreve bem! Que coisa boa ler seu texto! Ele flui deliciosamente e não consegui parar antes de chegar à última palavra. Realmente, digno da frase do Nelson.
Abraços
PS: oi, dá uma corrigida na frase do Nelson... faltou um “r” em mortas...
Me identifico tanto com alguns textos. A maneira que Nelson Rodrigues conduzia o conto, faz nos vermos em situações parecidas!
O menino é um verdadeiro escritor! O texto me prendeu... e como eu te falei, o legal é o final, embora “esperado” desde o início, aparecer como algo bem inesperado. Parece aqueles filmes em que, quando a gente relaxa, acontece o inevitável... muito bom!
Beijos.
nelson rodrigues é muito bom.. adoro ele...
Sempre fiquei admirado como Nelson Rodrigues conseguia falar sobre a demência humana com um toque de lirismo! É como se ele tivesse a capacidade de ver todos os horrores da natureza humana com extrema compaixão! Existe sempre um elemento de profunda compreensão pelo demente como se dissesse: o perverso é perverso porque o mundo assim o ensinou! O demente só se torna demente porque não foi amado o suficiente!
Bela homenagem para um dos medalhões da nossa dramaturgia e literatura!
Bjs
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