MARIAS DO NOSSO LAR


Nasci na típica família de classe media da década de setenta no Brasil. Aquele tipo de sociedade onde os filhos obedeciam rigorosamente às ordens dos pais, onde na escola respeitávamos os professores e morríamos de medo da figura autoritária do diretor. Onde filhos tratavam os pais por “senhor e senhora” e beijavam os avós quando chegavam, pedindo a benção.

Nasci numa época em que a empregada domestica fazia parte da família. Não eram apenas pessoas que limpavam e organizavam sua casa, eram amigas das patroas, e criavam os filhos como aos seus. Fachada!!! Uma época em que havia a divisão clara e palpável de que você é pobre e precisa me servir. Uma visão racista, por que empregadas eram negras na maioria e portanto não mereciam respeito. Uma sociedade que mascarava o preconceito e tratavam essas empregadas como escravas, sem direito algum. E muitas delas passaram uma vida toda servindo, e quando não mais tinham forças para lavar, passar e manter a prataria limpa, eram substituídas por alguma sobrinha mais jovem que apresentara, com mais força pra labuta, e confiável, afinal foi a velha empregada que indicou.

Nunca tivemos uma empregada fixa em casa. Eram duas mulheres fortes que davam conta de toda a arrumação e organização do lar ( mãe e avó). A cada quinzena uma faxineira vinha para a limpeza mais pesada, o que gerava conflitos por que ao ir embora no fim do dia, a avó criticava tudo o que a moça havia feito. Depois de alguns anos, desistiram disso também. Minha mãe era o tipo de dona de casa que não sabia comandar uma empregada, acabava deixando que ela mandasse em tudo e fizesse o que lhe dava na cabeça.

Mais tarde, já adulto, novamente precisamos de uma auxiliar por que com a avó doente e minha mãe já um tanto envelhecida e cansada do serviço domestico achamos ela a CIDA. Parece que a maioria das empregadas e faxineiras se chamam: Marias ou Cidas. Pois bem a nossa atendia pelo segundo nome e era folgada ao extremo. Chegou ao ponto de exigir que minha mãe deixasse a pia da cozinha limpa para quando chegasse não precisar lavar a louça. Afinal, era paga pra que? Limpava mal, passava o dia todo fumando e conversando e ainda o pior, comia como uma condenada. Algumas vezes trazia o pequeno filho Wesley que vira e mexe quebrava algo. Mas Cida era aquele tipo de brasileira que mora em favela, que tem muitos filhos com nomes estranhos, mas tem um coração solidário e afável. Minha avó adoentada como disse, não andava mais e permanecia o dia numa cadeira de rodas. Certa manhã atrapalhada minha mãe pediu que Cida cuidasse de minha avó. Ela foi carinhosamente ao quarto, a tirou da cama, e fez a higiene matinal. Colocou-a posicionada na frente da TV e foi fazer o que devia. Quando chegamos, nos deparamos com uma cena bizarra. Minha avó com o cabelo repartido do lado, com gel, um pouco de blush no rosto, e cachecol. Cida a deixou com uma aparência mais animada, segundo ela.

Por essas e outras que Cida ficou um tempo conosco, por ser preguiçosa, mas de uma generosidade absurda. Semi analfabeta, com três ou quatro casamentos. Uma infeliz que aos fins de semana enchia a cara de cachaça, e cantava a vida no seu barraco. Uma pessoa adorada por todos.
Desde pequeno durmo com um escapulário (uma cruz benta que pertenceu ao meu avô) debaixo do travesseiro. Um belo dia vejo Cida arrumando minha cama, e antes de finalizar, beijou sofregamente aquele crucifixo com seus enormes lábios. Toda noite eu fazia o mesmo gesto, e por anos beijei Cida por tabela, sem saber.

Hoje estão quase extintas as Cidas da nossa sociedade. As empregadas visam o valor do dinheiro, e não se apegam mais a casa, patrões ou filhos deles. Querem ser diaristas, e não pestanejam em abandonar uma casa por outra que seja menor e lhe pague mais. Acabou a era das mulheres submissas que de manhã apinhavam os ônibus maldizendo as patroas. Isso fará falta um dia. O carinho que as mães deixavam de dar aos filhos eram supridos por essas mulheres que não distinguiam o amor dos seus filhos aos dos patrões.

Nossa sociedade evoluiu. O Brasil da desigualdade continua vivo, e só se deixa usurpar dos direitos de cidadão aqueles que querem. Clamo para que essas gerações novas sejam mais inteligentes que a minha, que a dos meus pais. Que façam a diferença e entendam as diferenças com naturalidade. Não precisamos obrigar ninguém a respeitar o outro, isso é algo genético, apenas deve ser exercitado mais vezes.

Adoro as Cidas que como aquela que um dia trabalhou em casa, nos deixa histórias para serem contadas posteriormente.

Abração a todos e ótima terça feira.

4 comentários:

AD disse...

Agora com minha vó doente, a necessidade inevitável de ter pessoas auxiliando me joga nesta novela que é pesquisar, contratar e conviver com Marias e Cidas.

Bom te conhecer! Inté!

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

Por aqui temos a Marilene ... 25 anos de casa ... uma irmã ... cuidava de mamys como se fosse sua própria mãe e, agora, cuida da gente ... claro q temos uns arranca-rabos de qdo em vez, qdo ela abusa, já falei disto lá, mas faz parte com certeza ...

Querido, poder te conhecer e ao Marcos, foi um dos pontos altos desta minha estada em Sampa ... Obrigado pelo carinho. Você é muito mais q o Fael virtual q eu conhecia ... definitivamente um amigo dos tempos do Jardim de Infância ... já já apareço em Campinas ... e estamos esperando vcs por aqui em BH ...

O Conto eu já li ... falar o que? SUPIMPOSO!!! tá bom? rs

Bjão querido ...

Anônimo disse...

Existe algo de belo nessas relações não consanguíneas que é quase indescritível!
As Cidas eram de um tempo, nem tão antigo assim, que se apegavam à família como à família a elas.
O mundo moderno conseguiu quebrar essa "dependência" saudável que nos foi ensinado em padrões muito rígidos, mas sabe de uma coisa: É preferivel aprender esse apego saudável de maneira rígida do que não saber dele e gritar liberdade sem saber o que essa palavra significa!
bjs

Márcia de Albuquerque Alves disse...

Você simplesmente retratou a realidade. Sou desse tempo também e convivi com algumas Cidas e Marias. Confesso que hoje é muito diferente. Lembro que na casa de uma tia-avó teve uma "Maria" que chegou lá mocinha, casou e teve filhos, só deixou a casa dela quando minha tia faleceu.