As Miseráveis

O Post de hoje faz parte de uma coletânea de contos escritos pelo dono desse blog: eu.

Selecionei um do textos escrito em 2002 e que faz parte de uma crônica chamada: Viveiro de Deus.

Para quem tiver paciência de ler....espero que gostem


01° andar – apto110: AS MISERÁVEIS


Quando abriu a porta daquele miserável quarto no fim do corredor, Juliete estava exausta da noite que tivera. Tentou não fazer barulho, porque sua companheira de infortúnios dormia. Sentou-se na cama, abriu a bolsinha de couro, despejou o conteúdo sobre a colcha de retalhos e examinou-os. Juntou as notas que estavam amassadas e as moedas e fez montículos com pouco dinheiro que ganhara. Separou os preservativos novos dos envelopes usados e guardou-os na bolsa novamente. Estava cheirando cigarro e colônia barata. Aos poucos tirou toda a parafernália que a incomodava e olhou a amiga deitada, encolhida sobre o colchão velho que ganhara de um cliente. Estava frio, mas não tinham cobertores ali, sentiu pena de vê-la naquele estado, mas era uma situação que não podia reverter. Encolheu os ombros e decidiu que também dormiria. Mais tarde quando levantasse tomaria um banho. Passou a mão por entre as pernas para notificar-se se estava limpa. Achou melhor dormir.
Acordou assustada com gritos da companheira, a canseira era muita, dormira umas cinco horas, apenas. Deveriam levantar, porque à tarde teriam que procurar algo para comer, mas não conseguia entender o fato da amiga estar gritando, demorou alguns minutos e conseguiu raciocinar o que estava acontecendo.
- O que é isso Valda, pare de gritar. Disse Juliete chacoalhando a amiga
- Tire a mão de mim sua vadia, e esbofeteando-a Valda jogou a amiga na parede.
- O que é isso? Reclamou Juliete e chorando encolheu-se no chão. Nunca deixei ninguém me bater, odeio agressão, odeio. Chorava ainda mais.
Valda tomou consciência do que fizera e levantou correndo em direção a companheira para ajuda-la. Abraçou-a e pediu desculpas.
- Não quis agredi-la, estava tendo um pesadelo e quando senti mãos agarrando meu braço entrei em pânico. Perdoe-me, por favor. Suplicou Valda.
- Tudo bem, me ajude a levantar. Disse Juliete tentando apoiar-se nos calcanhares.
- Dê a mão. Nossa, que anel é esse que você tem aí? Quem foi que te deu? Disse Valda com os olhos arregalados para a jóia que Juliete carregava nos dedos.
- Viu que coisa mais linda? Respondeu, olhando o anel em seu dedo. Foi um velhaco do sul que me pegou no bar. Sabe, meio caído ele. Como a noite estava fraca, não tinha faturado nenhum centavo ainda, resolvi ir com ele. Só depois que terminou o programa é que fiquei sabendo que o miserável não tinha nenhum tostão. Disse sorrindo Juliete.
- Você fez de graça, de novo sua burra? Não aprende que tem que comer? Você tá me saindo uma rapariga muito idiota. Vai acabar doente ou com um tiro na orelha. Burra! Proferiu Valda.
- Calma aí, antes de me xingar. Sou é muito esperta. Enquanto o velhinho foi ao banheiro, olhei nas calças dele. Achei esse anel, um prendedor de gravatas, e duas aspirinas. Peguei tudo e me mandei. O velho ficou lá, peidando no banheiro. Disse Juliete as gargalhadas.
- O que? Perguntou Valda com as mãos na cintura.
As duas rolaram nas camas rindo da cena que Juliete fez imitando o senhor com quem fizera um programa na noite anterior.
- Sério? E ele ficou lá, sem nem te dar um beijinho de boa noite. Aí minha barriga, não agüento rir desse jeito. Você roubou até as aspirinas dele. Vai ter dor de dente e morrer na sarjeta, porque a puta que ele pegou, roubou até sua aspirina. Ai que merda! Gritava Valda.
Valda costumava ter um linguajar que não agradava muito a Juliete. Dizia que não ficava bem além de damas da noite, falarem palavrões. Deveriam manter um pouco a dignidade. Mas a amiga não ligava para tais palavras e continuava a vociferar coisas desagradáveis, em público ou sozinhas naquele minúsculo quarto do Viveiro de Deus.
- E o prendedor de gravatas? Cadê? Perguntou Valda em tom sério.
- Dei para o Albertinho. Encontrei ele quando vinha para cá e não tive escolha. Respondeu Juliete por entre os dentes.
- Não a-c-r-e-d-i-t-o ! Você deu de presente para aquele miserável? Você não aprende nunca mesmo Juliete. O que esse homem faz com você para ser tão capacho dele. Tome linha garota, vai acabar te matando, o Albertinho – disse o nome do rapaz rebolando os quadris – vai te enterrar em cova pública. Porque daquele você não vai conseguir nem um caixão decente. Dizia Valda com ódio nos olhos.
- Mas ele me ama, sei disso. Disse-me depois que dei o prendedor de ouro para ele. Argumentou Juliete como uma colegial.
- Você é estúpida, agora tenho certeza. Menina olha bem para minha boca e veja o que vou te falar: IDIOTA. Disse Valda mostrando os dentes podres na boca. Tinha a dentição horrível com os molares grandes e os caninos saltados para o lado e os dentes da frente muito proeminentes.
- Pare de falar assim comigo, sua bicha. Xingou Juliete
- Vaca, miserável. Sou mulher, mulher...Ouviu. MULHER. Respondeu Valda aos berros.
Valda atirou o vidro de perfume vazio em direção a Juliete que se abaixou deixando o objeto atravessar a janela do quarto.
- Cale a boca ouviu puta miserável. Sabe que sou mulher de verdade, mais do que você. Sou única, só eu existo, ninguém mais, eu Tina Reviera, a “deusa da noite...”eu. Valda sentou-se no chão e chorou como uma criança, comovendo Juliete que sentada em sua cama fumava desesperadamente.
- Tá bem desculpe, não quis dizer isso, me desculpe. Suplicou Juliete assustada
- Diga que sou mulher. Disse Valda baixinho.
- Aí também não, puxa vida! Resmungou Juliete se enfezando.
- Diga vamos. Disse Valda aos berros.
- Sim, tudo bem eu digo. Respondeu a amiga.
Levantando-se da cama, Juliete aproximou-se de Valda e estendendo a mão disse:
- Me perdoe doce donzela, a mais bela entre todas as mulheres, a poderosa Afrodite. Disse Juliete em tom sarcástico
- Assim eu não quero. Diga sinceramente. Pediu Valda
- Me desculpe amiga. Tá bom assim. Falou Juliete com um pouco de impaciência na voz.
- Está.O “amiga” valeu. Disse Valda enxugando as lágrimas que borravam sua maquiagem pesada.
- O que vamos comer hoje. Desde ontem que não ponho nada no estômago. Estou verde de fome. O filho da mãe do Albertinho estava comendo um lanche de mortadela e eu fiquei babando de vontade, ele disse que era para eu fazer uma dieta porque estou muito gorda. Veja só, eu gorda! Disse Juliete olhando-se no espelho quebrado do armário.
- Pois é boneca, eu comi dois pêssegos ontem quando cheguei. Miltinho me deu quando vinha voltando para casa. Acho que aquele garoto me ama. Fica sempre assim me olhando quando passo, sabe aquele olhar de vontade. Qualquer dia faço de graça para ele, só para ver se ele é chegado mesmo. Disse Valda também se olhando no espelho, dividindo o espaço com Juliete.
- Não seja ridícula Valda, o garoto deve ter uns treze anos. Nem sabe o que você é. Acha que os pais lhe contam sobre essas coisas da vida. Imagina, ficam lá o dia todo arrancando o coro das pessoas que necessitam deles. Um dia ponho fogo naquilo. Miserável do velho outro dia me negou uma maçã fiada. Veja que decadência, antes a gente comprava e pagava no final do mês e tudo bem, agora aquele salafrário nem isso deixa mais. Tomara que apodreça em vida. Praguejou Juliete.
Valda mal escutava o que a amiga dizia, estava pensando no garoto. Fazia muito tempo que não se relacionava com um fedelho imberbe. Ficou excitada com a perspectiva de um romance. Os meninos nessa idade querem sacanagem, mas acabam se apaixonando pela amante.
- Sabe Valda, às vezes fico pensando na Glória e o jeito que ela morreu, ali branca e babando. Você detesta o Albertinho, mas ele nunca me deixou experimentar drogas. Olha que eu já quis dar uns tapinhas, mas ele disse que me batia se fumasse. Contou Juliete a amiga.
- Pois eu não preciso de nenhum cafetão para fazer isso. Sei que faz mal, já experimentei, não curti e to aqui, limpinha. Respondeu Valda orgulhando-se de não consumir drogas.
- Acho que vou tomar um banho. Estou meio fedida. À noite tenho que trabalhar. Hoje vou a uma gafieira com o Mato Grosso. Convidou-me e o Albertinho disse que sim. Parece que ele quer impressionar alguém e precisava de uma mulher bonita para isso. Acho que vou colocar aquele vestido preto com umas tranças douradas, o que acha? Perguntou Juliete.
- Deixa eu ir também, deixa. Pediu Valda com as mãos em posição de oração.
- Vê lá, isso é passeio para dama. Disse Juliete.
- Sua cadela miserável. Egoísta. Profanou Valda.
- Não sou eu que estou indo, foi o Mato Grosso que convidou. Argumentou a amiga querendo despistar o travesti que estava a sua frente.
- Eu sei, mas você bem que podia me levar junto, eu saio de perto, juro. Não fico na sua cola, e arrumo carona pra voltar, por favor, deixa. Suplicou Valda.
- Sei lá, se arruma que a hora que o Mato Grosso chegar eu peço para ele. Se fizer cara, desista porque mando você ficar, entendeu?
- Obrigada. Me empresta o anel? Pediu Valda.
- De jeito nenhum, imagina. Já vou fazer muito de te levar, ainda por cima quer o meu anel. Esqueça. Respondeu Juliete deixando Valda sozinha no quarto.
- Miserável. Profanou Valda por entre os dentes sem que a amiga ouvisse. Isso há de ser meu. Você não merece vadia. Por que tudo é para ela? Sempre os melhores clientes, as melhores roupas. Albertinho. A barriga de Valda roncou e sua boca salivou de fome.
Valda ficou olhando-se por um tempo no espelho, imaginando ser Juliete. Odiava a companheira de quarto e queria sua ruína. Odiava-a por ter nascido mulher e ela não. Abominava sua genitália. Apoiando-se numa cadeira ficou de pé e prendeu seu órgão sexual por entre as pernas. Estava nu e ficou admirando seu corpo. Era uma mistura de homem e mulher. Seios de silicone em ombros largos e pernas grossas. Por mais que tentava os traços lembravam-lhe o tempo todo que era um homem. Valda não admitia isso, odiava as mulheres incluindo Juliete. Desejava ser como ela, ter os cabelos longos e lisos, a pele clara no rosto, sem barba e o colo macio. Chorou olhando-se e quis morrer. Estava perdendo um pouco a razão. Se não comesse teria uma crise e acabaria enlouquecendo.
À noite quando Mato Grosso chegou as duas estavam prontas, Juliete vestida de modo vulgar e Valda, um travesti ridículo. Usavam a mesma colônia de alfazema empestando o quarto com o cheiro de perfume velho.
O homem gordo e pelancudo entrou naquele quarto minúsculo sob a bajulação das infelizes. Mato Grosso era um caminhoneiro sujo e barbudo que pagava a mulheres por um momento de prazer. Juliete olhou-o e sentiu nojo pensando no que teria que fazer mais tarde. Valda tentava de todo jeito agradá-lo. Quando a amiga pediu para que a levassem, o homem asqueroso riu e disse que de modo algum levaria um travesti para o baile. Zombou de Valda humilhando-a pelo traje que vestia e pela maquiagem.
- Seu porco imundo, sebento. Quem você pensa que é com essa barriga enorme, peluda e fedorenta. Gritou Valda ao homem.
- Cala boca bichona, senão te meto a mão na cara. Ameaçou Mato Grosso, já levantando a mão para bater em Valda.
- Pare de falar Valda. Pediu Juliete pacientemente.
- Não paro não. Esse monte de pelancas inválido, pensa que é muito homem. Precisa vir aqui pagar uma mulher para ter um pouco de diversão. Brocha!!!! Coitada de Juliete que terá que se deitar com você depois, fedido miserável. Cafetão de puta pobre!!! Gritava Valda descontrolada, rodopiando em torno do casal.
Mato Grosso atingiu Valda no queixo jogando-o de costas no chão.
- Cala a boca viado miserável. Aqui quem manda sou eu, você não vai e acabou. Não quero passar por ridículo carregando um travesti feio e mal vestido como você. Disse o homem gordo em tom de ameaça. Fica aí bicha nojenta!
Valda levantou-se e saltou sobre o gordo grudando em suas costas. Este girou Valda e jogou-o novamente no chão fazendo-o bater as costas numa cadeira, tirando-lhe o fôlego.
Quando estavam saindo, Valda com um golpe de facão abriu a cabeça de Mato Grosso ao meio espirrando sangue no rosto de Juliete. Ele caiu sobre a cama sem um ar de vida no imenso corpo.
Assustada Juliete gritou. O travesti imediatamente agarrou-a pelo pescoço e tampou sua boca, até perceber que a amiga estava mais calma. Com uma das mãos ainda segurava a arma do crime.
- Você o matou, sua burra. Disse Juliete retirando a mão de Valda. E agora imbecil. Como vamos fazer? O Albertinho vai acabar com a gente.
- Eu não fiz por querer, ele me ofendeu. Maldito, porco miserável. Ai eu matei!!!! Gritou Valda num acesso de loucura. Segurando o facão afiado com as mãos trêmulas.
- Cala a boca. Dizia Juliete tentando calar a amiga que perdia o controle. Jogue essa faca longe. Disse Juliete.
- É a fome, eu disse que ficava violenta com fome. Ai a polícia vai me levar! Não, não...Gritava Valda escorregando pela parede, desesperada sabendo que os policiais iriam torturá-la na cadeia.
- Vamos dar um sumiço no corpo e dizemos ao Albertinho que ele não veio aqui. Argumentou Juliete.
- Como vamos carregar esse gordo imenso e limpar esse sangue. Ele pesa muito e além do mais estou fraca, não me alimento há muito tempo. Não terei forças para leva-lo. Disse Valda olhando para o cadáver do homem que esvaia em sangue sobre a cama de Juliete tingindo o lençol como sua massa cefálica.
- Vamos procurar nos bolsos dele, vejamos se tem dinheiro, quem sabe não podemos fingir que foi assaltado. Disse Juliete tentando amenizar a situação.
As duas remexeram os bolsos e encontraram um maço de notas velhas, contando não daria para pegarem um ônibus. Mato Grosso estava liso sem um tostão no bolso. Juliete ficou possessa e chutou as pernas do homem morto.
- Esse miserável não tem dinheiro. O maldito ia me levar a gafieira e não tinha nem um tostão para me pagar uma bebida. Lacráio gritou Juliete cuspindo no defunto.
As duas sentaram cansadas ao lado do corpo e olharam-se. Estranhamente tiveram o mesmo pressagio. Sorriram e correram em direção a faca que estava no chão.

No dia seguinte naquele fétido cômodo, com as paredes sujas, uma pia estragada e um fogão velho foi servido o maior banquete que Albertinho pode comer em sua vida. Os pratos de porcelana, talheres novos e uns vinhos de primeira qualidade, foram emprestados da mocinha do 809. Serviram iguarias de carne, um suflê de miolo e postas de medalhão cozidos em banha supostamente de porco.
Na manhã seguinte, os ossos de Mato Grosso sem um filete de carne foram carregados dentro de um saco para obra de cobertura nos fundos do prédio. Foi despejado no meio da estrutura que seria concretada. As duas desossaram o homem gordo e se alimentaram de sua carne junto da vizinhança toda que desfrutou de um churrasco na laje recém feita. Venderam o caminhão de Mato Grosso e com o dinheiro fizeram a festa. Valda com uma mini-saia roxa e um belíssimo anel que ganhara de presente da amiga cantava sozinha enquanto Juliete sorridente beijava a todos. A comemoração era pela herança que recebera. A mãe morreu e deixou uma fortuna para Juliete, segundo Albertinho, que explicou a todos o motivo do dinheiro. A carne, um pouco gordurosa acabou em minutos. Uma relíquia em tempos difíceis.

Fim
rs rs rs...é macabro, mas faz sentido junto dos outros textos que compõe essa coletânea.

2 comentários:

descolonizado disse...

muito legal .

Anderson Cyrino® disse...

Rafael!
achei muito macabro, mas é bom... pai do céu, churrasco na laje é???
Deus é mais... hehe
abração