SAUDADE

Hoje, faz exatos 12 anos que minha avó materna nos deixou. Incrível que ao acordar flashes daquele dia vieram tão nítidos como se os vivesse ontem. Partiu num ciclo de 88 anos, na véspera de completar mais uma primavera. Amanhã dia 15 de março completaria 100 anos.

Existe uma tênue decisão a ser tomada quando um parente próximo, que vive ao seu lado adoece. O que fazer? No caso da minha avó, após uma gravíssima embolia pulmonar, retornou para casa sem reconhecer mais ninguém. A infecção foi tão severa, tão grave, que toda a sua percepção de realidade se extinguiu. Não sabíamos lidar com o ocorrido, o drama durou alguns meses até se estabilizar. Ela viveu assim por 14 meses, e depois se foi. Mas cuidamos sem esmorecer.

Após um tempo nos adaptamos a realidade, e tanto os adultos quanto as crianças transformaram aquela situação desconfortável numa brincadeira. Passamos a enxergar de outra forma a doença. Algo muito próximo com os personagens do filme “ A Vida é bela”.

Muitas situações engraçadas ficaram na lembrança, varias cenas e acontecimentos que nos deixam uma saudade maior ainda. Mas a imagem guardada na lembrança não é essa, e sim da avó saudável, risonha e severa que ajudou a criar as 3 crianças da filha.

Participar da passagem de uma pessoa próxima é um tanto misterioso e inexplicável. Uma semana antes, na época carnaval, viajamos todos e a deixamos aos cuidados de minha mãe, que é uma pessoa sem paciência para esse tipo de situação. As duas ficaram sós e puderam, de alguma forma, exorcizar fantasmas do passado, mesmo minha avó não falando mais com tanta desenvoltura, mas minha mãe jurava que estava totalmente lucida. Outras pessoas da família também tiveram oportunidade de resolver pendencias da vida com ela. Fatos que não precisam ser contados.

Outro acontecimento que nos impressionou nas vésperas de sua ida, foi a insistência de chamar por um sobrinho que tinha a mesma idade dela. Chamava-se Zezinho, morava em Santos, litoral de São Paulo, e por uma noite interminável ela o evocou. Ao ligar para os familiares dele após a morte da minha avó, sua cunhada em prantos noticiou que Zezinho havia morrido, na mesma noite em que minha avó o chamou incessantemente, ele de lá dizia que precisava ver “mocinha”(apelido da minha avó) antes de morrer.

Na véspera de sua passagem, observávamos suas atitudes, e percebemos que a noite inteira ela permaneceu acordada. De longe percebíamos ela levantar a mão como se chamando alguém. Os olhos acompanhavam dentro do quarto de um lado a outro como se alguma pessoa estivesse caminhando. Posso afirmar que algumas vezes ela sorriu.

Sua religiosidade sempre foi exacerbada, e por conta disso, nós familiares respeitávamos a suas atitudes. Crescer, passar pela adolescência sem perder ninguém assim tão próximo  é complicado, por que uma hora você tem inevitavelmente que lidar com a morte. Havia perdido outros parentes, os avós paternos, mas era diferente, por que o amor de quem convive 24 horas é mais intenso. Sinto falta de todos, mas dela em especial.

Cuidar de um doente, abnegar-se de horas e dias da sua vida para estar ali ao lado de uma pessoa que necessita não é a melhor das situações. As circunstancias que nos levam a cuidar de um parente não são questionadas, assim como eu e meus irmãos não o fizemos. Em momento algum, nos passou pela cabeça abdicar dos cuidados e interna-la numa clinica. Ela esteve ali, com todos ao seu lado até o ultimo momento de vida. 

E melhor que isso, foi à certeza de uma consciência tranquila, por ter feito tudo o que estava ao nosso alcance.

Boa quarta feira a todos.

6 comentários:

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

Sei bem o q é isto pois, desde cedo tive q lidar com estas perdas. Aos 11 anos perdi um primo de 12 q era meu companheiro de infância. Depois perdi vários parentes importantes para mim, uns mais outros menos. Mas a perda de meu Pai aos 23 anos [ele com 47] e de minha irmã aos 50 [ela com 45] me foram profundamente dolorosas. Todo o processo desde o início da doença, o tratamento inglório, o sofrimento deles e o nosso até chegar à perda final. Tudo sob a minha guarda total. Enfim, tudo é muito difícil. Eu e o Elian temos um pacto para o caso de vivermos muito e ficarmos velhinhos ... como temos a mesma idade vamos envelhecer juntos e provavelmente será muito difícil para um tomar conta de si e do outro caso necessário. Então, vamos os dois para uma casa de idosos e lá, os dois seremos assistidos profissionalmente. Não quero ficar nas mãos de irmãos, cunhadas ou sobrinhos q em suas vidas já possuem a carga natural de cada um.

Enfim ... um tema interessante pois estimula a reflexão, uma reflexão nem sempre feita pois incomoda e amedronta à maioria dos mortais.

bjão

Karina disse...

Belo texto e bela homenagem. Há menos de um mês soube do falecimento de minha ex-sogra, ao obter a resposta de felicitações pelo aniversário do meu ex (coisa que eu não tinha muita certeza de fazê-la), o que muito me chocou e me entristeceu, pois realmente a amava e sentia a sua falta. Enfim, vida que segue, e que Deus nos permita ter nossos pais ao nosso lado por muito, muito tempo mesmo. Beijos, Karina.

Marcia disse...

Oi Rafinha, fazia tempo que não lia e/ou comentava direto no blog, mas o tema saudade me é recorrente. Em duas semanas fará um ano que minha mãe se foi. Já perdi a todos que amei intensamente, as avós, inclusive a que me criou, a madrinha que ajudou minha avó, e a minha Bá, que ajudou as outras duas, e por fim minha mãe. Perder é um modo da gente se expressar, pois essas pessoinhas que tanto amamos e tanto nos amaram deixam em nós esse legado eterno de bem viver, e porque não bem morrer, cada uma com sua cruz a carregar. Que Deus em sua infinita sabedoria e em qualquer de suas formas manifeste o consolo carinhoso em seu coração, sempre. Beijos. Ma

Cris Medeiros disse...

Eu tive que lidar com poucas perdas por morte, e ainda não de uma pessoa muito próxima, ou da família. Faço uma idéia de como seja, mas não posso dizer que sei exatamente como é.

E curioso o seu relato, me faz acreditar ainda mais que existe vida depois da morte.

Beijocas

Cesinha disse...

Bem, minha vida talvez tenha se iniciado de verdade no dia em que um primo muito querido meu nos deixou. Naquele dia eu decidi que seria médico. Se hoje estou aqui, devo muito disso a ele.

Nem preciso dizer que minha vida é um constante interrogar a morte. No início era como se ela fosse um espectro às minhas costas. Com tempo o meu questionar foi se direcionando às razões da vida. Sempre que a interrogo hoje é para pedir satisfações da vida, entende?!

Um abraço bem forte!

railer disse...

lendo isso fiquei com lágrimas nos olhos... hoje faz quatro anos que minha avó materna se foi (eu cheguei a falar na época no blog) e sinto muitas saudades dela tb.
como a tua, a minha querida vovó hilda, tb teve problemas, foi pro hospital e depois voltou pra casa, recebendo cuidados de todos ao redor.