A MÃE ZELOSA
“AMAR
É SER FIEL A QUEM NOS TRAI...”
(Nelson Rodrigues – Flor de Obsessão)
Necreto levou a última colherada de sopa à boca e
fez o seu gesto rotineiro esfregando o estômago em sinal de satisfação. Deu
dois arrotos, limpou a boca na toalha de mesa e levantou-se em direção a sala
onde sua mãe lhe serviria a gelatina espumosa que ele tanto gostava. Sentou-se
apertou o botão do controle e pôs-se a assistir seu programa de esportes
predileto.
Aos trinta e dois anos de idade Necreto era um
rapaz que ainda não estava pronto para casar. Filho único e mimado pela mãe!
Namorava uma garota há quase quinze anos e até então não manifestara vontade de
unir-se em matrimônio. Amelinha o encontrava todos os dias perto da hora do
jantar e depois ia lecionar numa escola distante. Boa moça, de formação
adequada, era perdida de amores pelo rapazote. Mas a culpada de tudo estava na
cozinha preparando um copo de milk-shake para o filhão. Soraia Monterrey trazia
o garoto num zelo o qual só ela era capaz de manter. Nunca chamava sua atenção
e defendia-o com unhas e dentes.
Mudaram-se para o bairro há mais de trinta anos,
quando o pequeno Necreto ainda engatinhava. Sozinha no mundo criou o pequeno
sem ajuda de ninguém. Matriculou-o nos melhores colégios por que exigia uma
educação modelo. Diziam às línguas ferinas que viviam de uma herança que
recebera dos pais. Mas o grande segredo sempre girou em torno de quem seria o
pai do pequeno Necreto. Mistério!
Com o passar dos anos os vizinhos esqueceram o fato
e passaram a ter Soraia como uma grande amiga. Estava sempre disposta na
organização de festas beneficentes, bingos para igreja ou mesmo uma simples
quermesse. Mulher de bom gosto, decorava tudo com bandeirolas coloridas e balões
de gás. No carnaval ninguém a segurava, descia a avenida em salto quinze fantasiada
com muitas plumas e brilhos. As pessoas amavam Soraia e conseqüentemente
Necreto.
Aos quinze anos o
pimpolho ganhou uma caderneta de poupança gorda da mãe caridosa. Manteve o
dinheiro aplicado e hoje tem uma pequena fortuna, algo que o impede de
trabalhar, já que consegue tudo o que quer vivendo dos juros de sua gorda
economia. Nunca deixou o país, mas um dia, segundo ele, verá uma corrida de
fórmula 1 em Mônaco, sentado ao lado de gente muito rica. A namorada servia-lhe
apenas de aperitivo, as noites mais calmas saia à caça de mulheres mais
voluptuosas, e sempre terminava a noite nos braços de três ou quatro, era um
pervertido, mas a mãe o perdoava, afinal ele ainda estava com os hormônios à
flor da pele.
A casa era toda decorada com cortinas de veludo
azul marinho, sofás de couro branco e dezenas de peças de porcelana espalhadas
pelos ambientes. Na copa onde religiosamente servia as refeições do filho havia
uma parede coberta de pratos pintados por ela. Eximia artista na Arte da
pintura de porcelana. O quarto com almofadas vermelhas contrapunha com os
móveis Luiz quinze e tapetes persas, comprados no mercado negro.
Eram duas pessoas a viver no luxo que só o dinheiro
podia proporcionar. Sempre diziam que não estavam numa cobertura de frente para
o mar porque tinham receio de chamar atenção. Soraia era uma mulher que se
preocupava apenascom o bem estar do filho. Mais do que o normal, por isso
preferia estar num lugar simples, com pessoas simples, assim poderia sentir-se
superior, sempre.
Mas como a felicidade eterna é apenas fantasia de
histórias infantis, Necreto um belo dia voltou a questionar a mãe sobre o seu
pai. Foi num jantar onde cozinhara um belo pato com farofa de miúdos de frango.
Ela quase engasgou. Fitou-o e pediu para conversarem sobre isso numa outra
ocasião. Fazia muito tempo que o filho
não tocava neste assunto. Desde a formatura no ginásio, ele nunca mais
questionara a presença do pai. Soraia sentia-se aliviada por isso, mas agora o
pesadelo voltara. Na idade que o filho estava, seria difícil esconder o destino
do pai. Mas com muito jogo de cintura contou-lhe a mesma história sobre o
piloto de aviões que a engravidou e depois fugiu.
Necreto desta vez foi mais longe, quis a descrição
física e o nome do elemento que a engravidara. Suando frio ela mencionou um
nome qualquer. No dia seguinte, no cartório da cidade, Necreto estava
procurando pelo pai. Não obteve êxito, porque como previra, era um nome
fictício. Isso o encabulou. Era um rapaz que não fazia nada, na verdade um
vagabundo, mas uma coisa ninguém tirava dele, a inteligência. Por pura falta do
que fazer pôs na cabeça que desvendaria o caso do seu pai sumido.
Não contou nada a mãe, mas passou a investigar os
lugares por onde passaram. Foi ao antigo trabalho dela, e não encontrou nada.
Nunca houve uma Soraia naquele lugar, muito menos o estabelecimento que ela
sempre jurara trabalhar. Os vizinhos interrogados não ajudaram em nada. Conheciam
a pobre mulher pelo esforço de educar um rapaz sozinha. Algumas velhinhas até
xingavam Necreto por ele querer remexer num passado que magoava a santinha da
sua mãe. Dava de ombros com os comentários. Queria mais que as velhas morressem!
O interesse agora era o de bancar o Sherlock.
Desesperada Soraia descobriu através de uma amiga o
intuito do filho em apurar a verdade. Passou a cozinhar guloseimas mais
apetitosas para ele. Comprava-lhe roupas novas quase todas as semanas. Chamava
os amigos que ele não tinha, para comerem em casa e sempre era a mesma cena
patética, aquele monte de homem sentado na sala sem abrir a boca. Ela solicita,
andava de um lado a outro servindo salgadinhos e cerveja geladinha. Os
camaradas iam por conta da comida, porque pouco se importavam com o tonto do
Necreto.
Fez dois pulôveres de lã inglesa para ele quando
estava chegando o inverno e quanto mais passava o tempo, mais o jovem
ficava convencido que havia um segredo grande na vida de sua mãe.
Necreto não conseguia tirar informação alguma da
pobre mulher. Pensou, raciocinou e decidiu que afastaria a mãe de casa para
poder investigar-lhe os pertences particulares. Somente assim descobriria a
verdade. Arrumou com a namoradinha sem graça um passeio ao zoológico. Mandou
que mantivesse a velha fora por algumas horas. E como sempre conseguia o que
pedia, pode vasculhar tudo da mãe, à vontade.
Não descobriu muita coisa, apenas algumas fotos
dela vestida com fantasias de carnaval ao lado de outras mulheres horrorosas.
Conseguiu concluir que talvez a mãe tivesse sido uma prostituta no passado e
tinha receio de contar-lhe. Não se importaria se isso fosse verdade. Só não
gostaria de saber que o pai fora um cliente.
Naquele dia quando a mãe voltou toda enfeitada de
brinquedinhos infantis e cheia de doces para o filho, Necreto a interrogou
sobre as fotos. Nada novamente, as datas e lugares batiam, só não conseguia
algo que lhe indicasse o pai. Ficou receoso de perguntar sobre a possível
prostituição e calou-se.
Um ano se passou e Necreto ainda tinha a obsessão
em descobrir de onde veio. Começou um tratamento psiquiátrico por conta de um
distúrbio emocional. A namoradinha junto de Soraia o convenceram. Foi muito
apropriado, pois o médico o ajudou traçar um plano que possibilitaria a
descoberta do pai, muito em breve.
Na noite de Natal, Necretinho após desembrulhar as dúzias
de presentes que a mãe lhe dera, sentou-se ao seu lado na mesa de jantar para
cearem. Nunca mais mencionara o maldito pai e isso era uma dádiva. Só que
Necreto despejou um calmante no vinho de Soaria, e em pouco tempo viu a pobre
cambalear. Sentou-a na cadeira da sala e pôs-se a interroga-la. Entre um soluço
e outro ela começou a contar sobre sua vida. Excitado com o que estava fazendo,
correu e trouxe para perto dela uma câmera de vídeo e um gravador. Era um verdadeiro
interrogatório policial. A cada pergunta ele balançava o lustre acima de suas
cabeças movimentando a luz e confundindo a pobre mulher. Ela sorridente
contou-lhe sobre a boate onde trabalhava e muitas outras coisas.
Definitivamente tinha sido uma prostituta. Que horror!!! Pensou o rapaz.
Depois de quase meia hora de interrogatório, a
namoradinha entrou e sentou-se ao lado do inquiridor. Estava um pouco
embaraçada com a situação, mas o jovem fez com que calasse a boca. Soraia
tagarelava sobre os homens que havia conhecido e em determinado momento
levantou-se e começou a falar gesticulando com os braços. Definitivamente a
bebida e o tranqüilizante não fizeram bem a pobre mulher. Enlouquecida, falava
alto e gritava palavrões quando mencionava algum homem que poderia ter passado
por sua vida.
Um pouco desconcertado Necreto investiu sobre sua
paternidade e acabou por descobrir o maior segredo de toda a sua vida.
Soraia Monterrey quando inquirida sobre o pai de
Necreto gargalhou de forma estridente e olhando o rapaz meio caolha, por que
não conseguia distinguir qual das imagens era realmente a dele, levantou o
vestido que usava naquela noite tumultuada de natal e bateu entre as pernas,
dizendo. Você saiu foi daqui.
Constrangido ele tentou segurar a mãe para que não
desbancasse em gestos obscenos na frente da namoradinha, mas nada impedia
Soraia de falar. Ele cutucara uma onça e agora experimentava o sabor do
escândalo. Não demorou muito para que algumas cabeças apontassem na janela.
Impedido de tocar todos para longe ofereceu de graça o espetáculo de sua vida.
Soraia andava de um lado para outro proferindo
palavrões e praguejando sobre as mulheres. Disse coisas absurdas e novamente
voltou-se para o filho. Acusou-o de ingrato e convenceu aos que ouviam que o
esforço em lhe dar boa vida, educação não fora suficiente. Então se queria
saber mesmo a verdade, revelaria.
Pôs-se de pé com certa dificuldade sobre a mesa de
centro da sala de estar daquela casa empetecada de enfeites e mostrou para o
jovem e toda a platéia o que escondia debaixo do vestido. Baixou a calça e
deixou que todos vissem seu órgão sexual. Masculino...
Foi geral a vaia que deram a Soraia. Necreto caiu
para trás no sofá numa crise asmática que quase levou sua vida. Quando acordou
estava deitado sobre sobre almofadas macias, com a namoradinha a chorar do seu lado. Olhou para
cima e viu pelo espelho da parede a mãe sentada de pernas abertas, arriada na
cadeira de balanço.
Apenas olhou-a, quando ainda estava deitado. Saiu
da sala.
Uma hora depois a polícia bateu a porta de Necreto.
Dois oficiais entraram e algemaram Soraia Monterrey. Levaram-na embora em meio
a aplausos dos vizinhos. O filho a denunciara por tê-lo enganado uma vida toda.
Cabisbaixa ela não olhou para ninguém. Era um elemento procurado. Soraia
Monterrey ou Genésio da Silva como constava em sua certidão de nascimento,
assassinara a esposa ha mais de trinta anos despejando chumbo derretido em seu
ouvido. Sumira como o filho ainda bebê e nunca mais fora visto. Travestira-se
no início para despistar a polícia, mas um desvio de comportamento o fez
acreditar que era realmente a mãe de Necreto. As provas de que Soraia era um
assassino vieram de um recorte de jornal que Necreto achara dentro dos
pertences particulares dela. Quando revelado a identidade masculina de sua
progenitora o rapaz concluiu rapidamente que se tratavam da mesma pessoa.
Falsidade ideológica, assassinato, prostituição.
Genésio ainda roubara o dinheiro de uma boate onde se apresentava travestido
nos primeiros anos. Longe criou o filho sendo a mãe que todos os jovens desejavam
ter.
Os garotos gritavam palavrões enquanto os policiais
com as sirenes do camburão ligadas a colocavam para dentro. Os vizinhos incrédulos!
Necreto parado no espaldar da porta da frente via sua mãe, ou seu pai sendo
levado como um bandido. Odiava aquela mulher. De dentro do carro da polícia
Soraia gritava para Necreto.
- Vai para dentro filhinho! Ponha um agasalho,
senão você fica constipado. Virando-se para os policiais comentou:
- Essas crianças não tomam jeito. Ah Necretinho!!!
2 comentários:
Olá Fael
Absolutamente surpreendente. Amei.
Bjux
Jesus toma conta ... qta imaginação ... nem Nelson Rodrigues engendraria uma trama destas ... gostei e muito ...
bjão
Postar um comentário