A SENSAÇÃO DE CULPA

A Dama de Cinza é uma das melhores blogueiras que conheço nesse universo virtual. Ontem em seu blog “Confissões Acidas” (confissoes-femininas.) ela falou sobre o sentimento de culpa, e digo que seria muito interessante que todos dessem um pulo e conferissem o que ela escreveu. Pedi permissão e também vou discorrer sobre o assunto.

Nunca havia pensado nessa questão de “ser” um prisioneiro da culpa. Engraçado como os pais a vida toda, desde que somos bem pequenos incutem em nossa cabeça que há sempre uma obrigação, uma divida com eles.

Um breve relato de parte da minha vida talvez exemplifique isso. Apesar da temática do meu blog não ser confissões pessoais, senti necessidade de falar após entender perfeitamente o que a Dama descreveu em seu blog.

Minha avó materna ficou viúva muito cedo. Aos 50 anos, meu avô já havia falecido e ela dependente dele, acabou passando essa necessidade de atenção a minha mãe, única filha mulher. Veio, portanto morar conosco, muito antes de eu nascer, e assim se fez a nossa vida em família. Claro que genro e sogra sob o mesmo teto é o mesmo que fios desencapados balançando ao vento, em alguns momentos eles se esbarram e soltam faíscas. Posso dizer que em minha casa vivemos por muitos anos uma “gerra fria” entre os dois.

Ela foi uma das melhores pessoas que conheci. A relação dela com os filhos era conflituosa e conosco, netos, completamente diferente. Por ter uma personalidade fortíssima, assumiu a criação dos três filhos da minha mãe o que tornou uma facilidade imensa para os meus pais, que saiam, viajavam sem nunca se preocuparem com o bem estar das crianças por que sabiam que estavam bem cuidadas. Todo o tipo de educação foi dado por ela, desde o comportamento a mesa até boa literatura. Porem isso teve um preço. Em determinada época, quando ainda estava na pré adolescência, descobriram uma doença congênita. Uma arritmia cardíaca que limitou um pouco a sua vida.

Deste momento em diante ela passou a morrer, e assim foi por mais de duas décadas. Uma morte anunciada. Uma demagogia que nos fazia sentirmos culpados por brincar na rua. O irmão mais velho logo escapou dessa prisão, ficando para os dois mais novos a responsabilidade de paparicá-la. Os pais continuaram com sua boa vida de viagens e diversões enquanto o papel se invertia, não era mais a avó que tomava conta de netos.

Mas a culpa estava ali, sem que nos déssemos conta. Não havia diversão em nada, sempre que saia de casa tinha aquela preocupação de que algo aconteceria. Uma tortura psicológica difícil de perceber. Quando se está envolvido na situação e cresce com isso, dificilmente se tem a clareza da percepção. A doença não era grave, mas ela se fazia de paciente terminal. Olhando fotos desse período percebo hoje o quanto ela era saudável.

Essa manipulação do afeto, da preocupação de uma criança é tão cruel quanto à violência física. Isso destrói sonhos, faz com que a infância termine mais cedo, sem que haja um resgate desse tempo perdido. Meus pais foram tão ou mais culpados por esse cárcere, por que permitiram que psicologicamente ficássemos presos a uma situação que não compreendíamos.

Há uma compensação nesse fato, pelo menos parte da minha educação, da minha formação moral, cívica, cultural veio dela. Esses momentos de prisão onde eu, o caçula, era obrigado a “cuidar” de uma senhora saudável e lampeira, possibilitaram uma gama de conhecimentos, de histórias, de respeito pelo próximo que meus pais sozinhos não teriam conseguido. Hoje percebo que tudo isso foi o meu preço. Mas a culpa estava ali, sem que soubesse nomeá-la.

O dia que ela se foi, eu a acompanhei até o hospital, entreguei-a aos cuidados médicos e ali encerrei minha missão. Não a vi morta, não acompanhei o sepultamento, e assim a imagem e a essência permaneceram comigo. No dia seguinte, ao amanhecer, minha mãe numa crise de demagogia, fez uma cena triste para os filhos. Os três viraram as costas e a deixaram sozinha. A única frase que ouviu, foi da minha irmã: A vó morreu ontem, não queira ocupar o lugar dela, por que daqui pra frente os três irão viver suas vidas.

Hoje, vacinado, não me permito sentir culpa. Meus pais têm a assistência necessária para a vida digna, de bem estar, o suficiente para que sejam felizes. Os filhos os mantêm muito bem, sem que nada falte, muito menos atenção, mas a manipulação pela culpa acabou quando a vó se foi.

Senti necessidade de falar sobre isso, por que vejo muitos jovens presos aos pais, torturados por uma situação que não tem escapatória. Não nascemos com a obrigação de sermos bengalas para a velhice dos pais. Existe um mundo enorme aí fora, e nascemos para ele. Não se permitam manipular. Não se permitam estar presos por pessoas que talvez não tenham tido uma vida plena e feliz. Cada um cultiva pra sim o que quer, e colhe as conseqüências.

Peço desculpas pelo longo texto.

Abração...boa quarta-feira

18 comentários:

HUGOSALUM disse...

Que engraçado que as vezes nos deparamos com textos magníficos como o seu e nos propomo a pensar no que estamos fazendo, em como estamos fazendo. ótimo, adorei. Obrigado.

Marcia disse...

Rafinha,
ando sumida, mas ando com saudades, são as mudanças rsss AMei o texto, campeão, sou FÃ da Dama, acho ela FERA. Tb sou refem da culpa, maldito ranço cristão, rezo para dela libertar-me...ou não...

Beijocas,

Unknown disse...

Reflexões importantes! Realmente não sabemos julgar esse tipo de manipulação como nocivo - e ele é!

Karina disse...

Não se desculpe pelo longo texto, pois ele é ótimo. Aliás, eu costumava ser uma pessoa que pedia desculpas por qualquer coisa, o que revela que sentia culpa em inúmeras situações, inclusive em relação aos meus pais. É por isso também que não pretendo voltar a morar com eles, a não ser que seja necessário. Tendo o meu espaço eu consigo me preservar e impedir que o sentimento de culpa me invada, da forma como aconteceu com você. Zelo pelos meus pais e pela minha irmã, mas não tenho culpa pela forma como a vida deles está, pois, como você bem disse, cada um fez sua escolha. Um beijo, Karina.

D. Martins disse...

..rs

Concordo com o que vc disse.
Me vi em várias situações dentro do seu texto.

Abração, Rafa.

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

Rafael vc foi precioso em sua abordagem ... sei bem o q é isto ... libertarmo-nos das manipulações afetivas é algo extremamente difícil e doloroso. Sempre a tentativa de nos desvencilharmos delas nos geram este sentimento horrível de culpa ... mas enfim ... devemos lutar com todas as nossas forças para nos desvencilharmos disto, caso contrário nunca saberemos o q é uma verdadeira felicidade e uma verdadeira liberdade ...

;-)

Arsênico disse...

Infelizmente este parece ser um mal que sofre maior parte da humanidade!

Conheço bem esse mal pelo próprio nome:::

Chantagem Emocional!

***

aBraço!

Lobo disse...

Que nada Rafa.

Ninguém merece ficar jogado abandonado por ai. Mas também é fato que a hora de viver existe para todos e passa para todos, e não é nada justo sugar a hora de viver de alguém. Todos temos as nossas armas para evitar a solidão, mas é fato que muitas delas são tremendamente injustas. Ai vai de cada um usá-las com bom senso.

Abração!

Visão disse...

Sinto-me felizardo por ouvir de minha mãe a seguinte fala "Criei meus filhos para o mundo. Gosto de imaginar que sou um Porto e eles são barcos, que quando precisam aportam e eu dou o suporte necessário."
Ela grita isso ao vento, e é real. Ela sempre diz "Tenho tudo o que preciso para viver, e não preciso dos meus filhos por perto".
Abraços, Rafa!

Mylla Galvão disse...

Rafa,
Eu saí de casa, deixando meu filho para minha mãe cuidar. Sei que fiz errado, mas ela gostava de me manipular por causa dele.
Voltei quase no final da vida dela e a amparei até ela ir... Meu filho cuidou dela até o fim!
Ela morreu o ano passado, nas vésperas do Natal... Sinto uma imensa falta dela. Mas sei que ela está bem e não tenho culpa no coração pelo que eu fiz. Essa saída serviu para me ensinar mtas coisas...
Por isso voltei! Para cuidar dela até o fim!

bjo

Cris Medeiros disse...

Eita! Sabe eu tinha uma intuição de que fazer um post sobre a culpa me traria algo positivo e trouxe. Esse retorno. Seu post é um belo retorno. Saber da sua história de me faz repensar a minha. E tantas outras histórias que me foram contadas.

Sabe o que é a gente sentir que não está passando por algo só? Que tem um monte de gente enfrentando a mesma coisa, sentindo as mesmas dificuldades? Isso faz você se sentir humano, normal, faz com que se permita.

Seu post mostra o quanto as pessoas podem ser cruéis com a gente, quando permitimos que elas sejam...

A impressão que tenho é que a pessoa que nos cria faz um investimento e depois quer o retorno daquilo. E não é bem assim!

Nossa tanta coisa passa pela minha mente que vou precisar de um tempo pra elaborar tudo isso!

E obrigada mais uma vez pelos elogios, vc sempre gentil!

Beijocas

Edilson Cravo disse...

A teoria é linda, mas a prática é tão diferente...rs
Eu vivo isto na pele e sei o que quis dizer com a postagem, mas o pior de tudo é aprender a lidar com as culpas internas e as cobranças externas.
Abraços e linda semana.

Três Egos disse...

Olá querido Rafael!

Adoro passar por aqui, se nunca falei, tá falado! Pena estes dias não ter muito tempo, mas enfim, não estou aqui para reclamar do tempo! rs

Sabe que, sinceramente, não estava compreendendo muito bem seu texto sobre culpa e, para mim, não estava fazendo o menor sentido. Porém, nos 3 últimos parágrafos eu percebi aonde queria chegar e, no último parágrafo eu me vi no seu post e me identifiquei muito. Este seu post foi um daqueles conselhos que nem um psicólogo dá. Aprendi muito agora! Eu, por ser o primeiro médico da família, de vez em quando se cria uma responsabilidade dentro de mim para com meus familiares que me deixa totalmente preso, penso que preciso trabalhar e ganhar dinheiro para sustentar minha família que tanto me sustenta hoje. Enfim, é esta a culpa. A minha culpa. Mas vc me ajudou bastante com seu post. Obrigado!

Abraço!

Marcos disse...

Olha Rafa, eu não tenho filhos e acho que não os terei. Mas sempre que alguém me ouve dizendo que não tenho filhos, me perguntam... -Quem vai cuidar de você na velhice?"

Acho muito egoísmo você pensar em ter filhos para cuidar de você na velhice.

A situação que você estava envolvido realmente era de chantagem.

Lembro que quando tinha 16 anos e fui morar na Australia, minha mãe queria de certa forma me impedir e sugeria o fato de morrer... ela tinha 50 anos de idade... hoje eu vejo o quanto ela era nova...

Abçs

Anônimo disse...

A culpa é um mal silencioso, uma sombra. Mas também usá-la como justificativa para não confrontar uma realidade que incomoda e que precisa de atitudes responsáveis é outro problema.

Seu texto me fez lembrar, sob outra ótica da culpa, do livro e do filme "A Insustentável Leveza do Ser", no qual o casal protagonista vive o conflito do peso e da leveza na busca pela felicidade no amor.

Você deve conhecer. Se não, vale a pena conferir e publicar suas impressões.

Abraços.

Alberto

Tathiana disse...

Pensando bem, acho q minha vida é governada pela culpa...
bjs.

Sandes disse...

Seu texto foi longo? Ops... nem percebi... A história foi tão envolvente que logo chegou ao fim sem cansar, pelo contrário, fez-me refletir sobre muito. Parabéns pelo post, agora vou entrar no blog da Dama de cinza. Valeu!

s a u l o t a v e i r a disse...

É, meu amigo, todos caímos nessas artimanhas.
Nossos pais são cruéis nesse sentido, e não justifico com o erro tentando acertar. Tô nesse conflito atualmente. hehehe

Enfim, vida segue, maçarico na mão arrebentando corrente.

Abração. Valeu o texto, vou ao blog da Dama.